A VERDADE NA CARIDADE
PRATICAR A VERDADE NA CARIDADE
Para não deixar cair no esquecimento
A Igreja do Século XX produziu na Alemanha de Adolf Hitler um Cardeal simplesmente brilhante que subiu à Cátedra de Pedro com o nome de Bento XVI para iluminar a história do Século XXI com um pontificado sem igual até então. O Cardeal Joseph Ratzinger brindou-nos com esta magnífica homilia na Missa de abertura do Conclave que o elegeu para Sucessor do Grande (Magno) Papa João Paulo II. Está aí uma página da literatura ratzingeriana que não deve ficar sem a apreciação do público católico.
CAPELA PAPAL
SANTA MISSA «PRO ELIGENDO
ROMANO PONTIFICE»
HOMILIA DO CARDEAL JOSEPH RATZINGER
DECANO DO COLÉGIO CARDINALÍCIO
Segunda-feira 18 de Abril de 2005
Is 61,
1-3a. 8v-9
Ef 4, 11-16
Jo 15, 9-17
Nesta hora de grande responsabilidade, ouvimos com particular
atenção quanto o Senhor nos diz com as suas mesmas palavras. Gostaria de
escolher, das três leituras, só alguns trechos, que nos dizem respeito diretamente
num momento como este.
A primeira leitura oferece um retrato profético da figura do Messias
um retrato que recebe todo o seu significado a partir do momento em que Jesus
lê este texto na sinagoga de Nazaré, quando diz: "Cumpriu-se hoje esta
passagem da Escritura" (Lc 4,
21). No centro do texto profético encontramos uma palavra que, pelo menos à
primeira vista, é contraditória. O Messias, falando de si, diz que é enviado
"para proclamar o ano de misericórdia do Senhor, um dia de vingança para o
nosso Deus" (Is 61,
2). Ouvimos, com alegria, o anúncio do ano de misericórdia: a misericórdia divina
põe um limite ao mal disse-nos o Santo Padre. Jesus Cristo é a
misericórdia divina em pessoa: encontrar Cristo significa encontrar a
misericórdia de Deus. O mandato de Cristo tornou-se nosso mandato através da
unção sacramental; somos chamados a promulgar não só com palavras mas com a
vida, e com os sinais eficazes dos sacramentos, "o ano de misericórdia do
Senhor". Mas que pretende dizer Isaías quando anuncia o "dia da
vingança para o nosso Deus"?
Jesus, em Nazaré, na sua leitura do texto profético, não
pronunciou estas palavras, concluiu anunciando o ano da misericórdia. Foi,
porventura, este o motivo do escândalo que se desencadeou depois da sua
pregação? Não o sabemos. De qualquer forma o Senhor ofereceu o seu comentário
autêntico a estas palavras com a morte de cruz. "Subindo ao madeiro da
cruz, Ele levou os nossos pecados no seu corpo...", diz São Pedro (1
Pd 2, 24). E São Paulo
escreve aos Gálatas: "Cristo resgatou-nos da maldição da lei, ao fazer-se
maldição por nós, pois está escrito: Maldito seja todo aquele que é suspenso no
madeiro. Isto, para que a bênção de Abraão chegasse até aos gentios, em Cristo
Jesus, para recebermos a promessa do Espírito, por meio da fé" (Gl 3, 13 s.).
A misericórdia de Cristo não é uma graça a bom preço, não supõe a banalização
do mal. Cristo leva no seu corpo e na sua alma todo o peso do mal, toda a sua
força destruidora. Ele queima e transforma o mal no sofrimento, no fogo do seu
amor sofredor. O dia da vingança e o ano da misericórdia coincidem no mistério
pascal, no Cristo morto e ressuscitado. Esta é a vingança de Deus: ele mesmo,
na pessoa do Filho, sofre por nós. Quanto mais formos tocados pela misericórdia
do Senhor, tanto mais entramos em solidariedade com o seu sofrimento,
tornamo-nos disponíveis para completar na nossa carne "o que falta aos
padecimentos de Cristo" (Cl 1,
24).
Passemos à segunda leitura, à carta aos Efésios. Trata-se, aqui,
em substância de três coisas: em primeiro lugar, dos ministérios e dos carismas
na Igreja, como dons do Senhor ressuscitado que subiu ao céu; por conseguinte,
da maturação da fé e do conhecimento do Filho de Deus, como condição e conteúdo
da unidade no corpo de Cristo; e, por fim, da comum participação ao crescimento
do corpo de Cristo, isto é, da transformação do mundo na comunhão com o Senhor.
Detenhamo-nos apenas sobre dois pontos. O primeiro é o caminho
rumo à "maturidade de Cristo"; assim diz, simplificando um pouco, o
texto italiano. Mais precisamente deveríamos, segundo o texto grego, falar da
"medida da plenitude de Cristo", que somos chamados a alcançar para
sermos realmente adultos na fé. Não deveríamos permanecer crianças na fé, em
estado de menoridade. Em que consiste ser crianças na Fé? Responde São Paulo:
significa ser "batidos pelas ondas e levados por qualquer vento de
doutrina..." (Ef 4,
14). Uma descrição muito atual!
Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decênios,
quantas correntes ideológicas, quantas modas do pensamento... A pequena barca
do pensamento de muitos cristãos foi, muitas vezes, agitada por estas ondas,
lançada de um extremo ao outro: do marxismo ao liberalismo, até à libertinagem,
ao coletivismo radical; do ateísmo a um vago misticismo religioso; do
agnosticismo ao sincretismo e por aí adiante. Cada dia surgem novas seitas e
realiza-se quanto diz São Paulo acerca do engano dos homens, da astúcia que
tende a levar ao erro (cf. Ef 4,
14). Ter uma fé clara, segundo o Credo
da Igreja, muitas vezes é classificado como fundamentalismo. Enquanto o
relativismo, isto é, deixar-se levar "aqui e além por qualquer vento de
doutrina", aparece como a única atitude à altura dos tempos hodiernos.
Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece como
definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades.
Ao contrário, nós, temos outra medida: o Filho de Deus, o
verdadeiro homem. É ele a medida do verdadeiro humanismo. "Adulta" não é uma fé que segue as ondas da moda e a última
novidade; adulta e madura é uma fé profundamente radicada na amizade com Cristo.
É esta amizade que nos abre a tudo o que é bom e nos dá o critério para
discernir entre verdadeiro e falso, entre engano e verdade. Devemos amadurecer
esta fé, para esta fé devemos guiar o rebanho de Cristo. E é esta fé só esta fé
que gera unidade e se realiza na caridade. São Paulo oferece-nos, a este
propósito, em contraste com as contínuas peripécias dos que são como crianças
batidas pelas ondas, uma bela palavra: praticar
a verdade na caridade, como fórmula fundamental da existência cristã. Em
Cristo, coincidem verdade e caridade. Na medida em que nos aproximamos de
Cristo, também na nossa vida, verdade e caridade fundem-se. A caridade sem
verdade seria cega; a verdade sem caridade seria como "um badalo que
retine" (1Cor 13, 1).
Falemos agora do Evangelho, de cuja riqueza gostaria de extrair só
duas pequenas observações. O Senhor dirige-nos estas maravilhosas palavras:
"Já não vos chamo servos... mas a vós chamei-vos amigos" (Jo 15, 15). Muitas vezes sentimos que
somos, como é verdade, unicamente servos inúteis (cf. Lc 17, 10). E, não obstante, o Senhor
chama-nos amigos, torna-nos seus amigos, oferece-nos a sua amizade. O Senhor
define a amizade de uma dupla forma. Não existem segredos entre amigos: Cristo
diz-nos tudo quanto ouve do Pai; oferece-nos a sua plena confiança e, com a
confiança, também o conhecimento. Revela-nos o seu rosto, o seu coração.
Mostra-nos a sua ternura por nós, o seu amor apaixonado que vai até à loucura
da cruz. Confia-se a nós, dá-nos o poder de falar com o seu eu: "este é o
meu corpo...", "eu te absolvo...". Confia o seu corpo, a Igreja,
a nós. Confia às nossas mentes fracas, às nossas mãos débeis a sua verdade, o
mistério do Deus Pai, Filho e Espírito Santo; o mistério do Deus que
"tanto amou o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigênito" (Jo 3, 16). Fez de nós amigos seus e nós
como respondemos?
O segundo elemento, com que Jesus define a amizade, é a comunhão
das vontades. "Idem velle idem nolle",
era também para os Romanos a definição de amizade. "Vós sois meus amigos,
se fizerdes o que eu vos mando" (Jo 15,
14). A amizade com Cristo coincide com o que exprime a terceira petição do Pai
Nosso: "seja feita a tua vontade assim na terra como no céu". Na hora
do Getsêmani Jesus transformou a nossa vontade humana rebelde em vontade
conforme e unida à vontade divina. Sofreu todo o drama da nossa autonomia e
precisamente levando a nossa vontade às mãos de Deus, oferece-nos a liberdade
verdadeira: "Não como eu quero, mas segundo a tua vontade (Mt 21, 39). Nesta comunhão da
vontade realiza-se a nossa redenção: ser amigos de Jesus, tornar-nos amigos de
Deus. Quanto mais amamos Jesus, quanto mais o conhecemos, tanto mais cresce a
nossa verdadeira liberdade, cresce a alegria de ser remidos. Obrigado Jesus,
pela tua amizade!
O outro elemento do Evangelho que desejo mencionar é o sermão de
Jesus sobre o dar fruto: "fui eu que vos escolhi a vós e vos destinei a ir
e a dar fruto, e fruto que permaneça" (Jo 15,
16).
Realça aqui o dinamismo da existência do cristianismo, do apóstolo:
constituí-vos para irdes...
Devemos estar animados por uma santa preocupação: a preocupação de
levar a todos o dom da fé, da amizade com Cristo. Na verdade, o amor, a amizade
de Deus foi dada para que chegue também aos outros. Recebemos a fé para a levar
aos outros somos sacerdotes para servir os outros. E devemos levar um fruto que
permaneça. Todos os homens querem deixar vestígios duradouros. Mas o que
permanece? O dinheiro não. Também os edifícios não permanecem; os livros também
não. Depois de um certo tempo, mais ou menos longo, todas estas coisas
desaparecem. A única coisa que permanece eternamente, é a alma humana, o homem
criado por Deus para a eternidade. O fruto que permanece é, portanto, quanto
semeamos nas almas humanas o amor, o conhecimento; o gesto capaz de tocar o
coração; a palavra que abre a alma à alegria do Senhor. Então vamos rezar ao
Senhor, para que nos ajude a dar fruto, um fruto que permaneça. Só assim a
terra será mudada de vale de lágrimas para jardim de Deus.
Por fim, voltemos mais uma vez à carta aos Efésios. A carta diz
com as palavras do Salmo 68 que Cristo, subindo ao céu, "deu dádivas aos
homens" (Ef 4,
8). O vencedor distribui dons. E estes dons são apóstolos, profetas,
evangelistas, pastores e mestres. O nosso ministério é um dom de Cristo aos
homens, para construir o seu corpo, o mundo novo. Vivamos o nosso ministério
assim, como dom de Cristo aos homens! Mas nesta hora, sobretudo, peçamos com
insistência ao Senhor, para que depois do grande dom do Papa João Paulo II, nos
ofereça um pastor segundo o seu coração, um pastor que nos guie ao conhecimento
de Cristo, ao seu amor, à verdadeira alegria. Amém.
Disponível em: http://www.vatican.va/gpII/documents/homily-pro-eligendo-pontifice_20050418_po.html,
online aos 11/11/13, às 16:01h.
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